Era uma calorosa manhã de domingo como
todas devem ser. O sol reinava soberano em meio à ambientação de um bairro
calmo e, nos botecos, os senhores de pele enrugada já discutiam sobre futebol.
Em um prédio cinzento, igual a tantos outros
daquele conjunto habitacional, ele dormia em meio aos ácaros e apatia de seu apartamento,
sonhando com coisas das quais não se lembraria ao acordar.
Lá fora, a vida circulava nos pátios e
corredores que dividiam os prédios. Alguns lavavam os seus carros, a velhinha
do térreo passeava com seu cachorro. Da janela, a vizinha paranóica gritava ao
telefone ao mesmo tempo em que se ouvia o barulho cortante de um liquidificador;
o cara do prédio ao lado tocava o seu instrumento de cordas e, bem abaixo da
janela dele, várias crianças brincavam eufóricas.
O seu quarto tinha um cheiro de suor e ar
abafado que misturado com os berros das crianças o fizeram acordar. Acordou
resmungando de cansaço e raivoso pelo barulho. Mal abriu os olhos remelentos e já
estava praguejando:
- Qual
foi? Um ser humano merece descansar até mais tarde aos domingos... Essas
crianças não têm mães, não? Que barulho maldito!
Passara a semana atravessando a cidade em
ônibus lotados e trabalhando duro em suas atividades diárias, e o domingo lhe
sobrara para o descanso, afinal, esse dia era sagrado para os que precisavam relaxar.
O próprio criador foi quem começou esse ritual dominical. Criou, criou e no
domingo descansou.
Ele levantou com a coberta ainda grudada em
suas costas e foi até a janela para abrir uma pequena fresta. Através das vozes
dos meninos, uma brisa suave adentrou os seus poros ao mesmo tempo em que a luz
do sol lhe queimava os olhos. “A realidade dói”, pensou ele. Em meio àquele
espaço solitário, foi até o banheiro e lavou o rosto. Lá fora as crianças
gritavam e riam sob a luz dum sol convidativo.
Logo voltou para a janela, dessa vez
abrindo um pouco mais, e viu as crianças agitadas como comerciantes ao
anunciarem mercadorias em uma feira livre. Ele, de toda certeza iria reclamar
do barulho daqueles meninos, mas algo chamou a sua atenção e ele quis parar por
um instante. Ficou observando a cena como um personagem dos filmes de western.
Eram meninos de oito a dez anos e estavam
descalços, a maioria sem camisa e brincavam de diversas maneiras. Alguns mais
de lado com seus álbuns trocavam figurinhas de futebol. Um grupo apostava
cartas de desenhos animados e, ao canto, em sua grande maioria, vários jogavam
bolinhas de gude e formavam um grande círculo.
- São
apenas crianças. Mas que vida boa dessa molecada... Não precisam se preocupar
com nada - disse ele, ainda mal humorado.
Assim, não quis mais reclamar dos meninos,
mas a sua raiva aumentava à medida que eles se divertiam e gritavam cada vez
mais alto. Para não se aborrecer mais e, já que estava acordado e não conseguia
voltar a dormir, resolveu sair do quarto e fechar a janela de uma vez por todas.
Foi até a sala, sentou-se no sofá e, defronte a TV, assistia aos apresentadores
dinossauros que reinavam há décadas nas grades dos canais. Não se deu ao
trabalho de abrir as janelas do apartamento e aquele cheiro de ar abafado
aumentava cada vez. Já estava acostumado de tal maneira que não sabia
distinguir os ares da sua rotina, apenas ligou o ventilador e com o controle começou
a pular os canais.
Não demorou muito e o volume da televisão
era invadido pela gritaria dos meninos que tinham as vozes refletidas através
dos prédios. Ele não queria se levantar e apenas aumentou o volume do aparelho.
Conseguiu ganhar a competição e teve paz por alguns poucos minutos, mas
novamente a criançada berrava do lado de fora. Foi o ápice da sua raiva.
Levantou-se do sofá como um vilão carrancudo dos desenhos animados e estava
decidido a fazer uma reclamação daquele barulho que o infernizava. Foi até o
quarto e abriu a janela com tamanha violência que os meninos lá em baixo
pararam o que estavam fazendo, olharam para cima e o viram com uma cara carrancuda
de poucos amigos.
Ele os encarou com a pior cara do mundo, e
os meninos o encararam por alguns segundos através daquele ar de inocência. Ele
olhou para aqueles olhos miúdos que vibravam energéticos e por um instante
ficou paralisado. Talvez por vergonha de estar ali procurando briga com uns
pequenos ou pelo fato de atrapalhar as suas brincadeiras inocentes. Não demorou
e os meninos logo pararam de olhar para ele. Agiram como se ele não estivesse
ali os observando e voltaram a se preocupar com as brincadeiras.
Lá de cima ele observava ainda
mal-humorado, mas algo imprevisto aconteceu fazendo com que ele desmontasse a
sua face carrancuda e logo esboçasse um pequeno riso no canto da boca. As
crianças discutiam as regras das bolinhas de gude. A discussão foi ficando
engraçada à medida que os meninos se posicionaram agitados sobre o assunto. Logo
depois que conseguiram manter certa ordem, um menino acabou indo embora
alegando que os outros tinham roubado as suas bolinhas. Os outros se defendiam
respondendo que aquelas eram as regras do jogo e que nunca mais iriam chamá-lo
para brincar. Ele observava a cena toda e, por um instante, foi ficando
interessado naquilo que estava vendo e não quis mais voltar para a sala com a
TV e o sofá, ficou no quarto e abriu a janela inteira.
Da janela, ele foi ficando ainda mais
sorridente ao ver que um dos meninos que trocavam figurinhas tinha acabado de
conseguir a última que faltava para completar o álbum. Era tanta felicidade
daquele menino que ele saiu pelo corredor gritando para todos os lados:
- Eu consegui
o Gerrard. O álbum tá completo!
E em sua maioria os meninos riam, e outros
ficaram com ciúmes, pois não conseguiram completar o álbum de figurinhas
primeiro. No mais, o barulho daquelas vozes infantis preenchia a manhã de
domingo, e a cena alimentava o olhar do observador.
Naquela altura, seu corpo estava leve e ele
surgia com um sorriso nostálgico no rosto. Lembrava dos tempos de menino e de
como conseguia as melhores figurinhas e as maiores quantidades de bolinhas de
gude.
Assim, não quis mais atrapalhar a
brincadeira dos meninos e resolveu sair da janela para começar a cuidar da vida.
Ligou o aparelho e pôs um som dos anos sessenta em volume médio. Tomou banho e
fez o seu café ainda pensando naquela alegria. Havia uma inquietação e uma
vontade de se mover que ultrapassava as paredes geladas e chegava até o seu
corpo. Uma sensação nova e ao mesmo tempo familiar. Ele havia acordado para o
domingo.
Talbert Igor