quarta-feira, 29 de abril de 2015

DOMINGO




   Era uma calorosa manhã de domingo como todas devem ser. O sol reinava soberano em meio à ambientação de um bairro calmo e, nos botecos, os senhores de pele enrugada já discutiam sobre futebol.
    Em um prédio cinzento, igual a tantos outros daquele conjunto habitacional, ele dormia em meio aos ácaros e apatia de seu apartamento, sonhando com coisas das quais não se lembraria ao acordar.
    Lá fora, a vida circulava nos pátios e corredores que dividiam os prédios. Alguns lavavam os seus carros, a velhinha do térreo passeava com seu cachorro. Da janela, a vizinha paranóica gritava ao telefone ao mesmo tempo em que se ouvia o barulho cortante de um liquidificador; o cara do prédio ao lado tocava o seu instrumento de cordas e, bem abaixo da janela dele, várias crianças brincavam eufóricas.
    O seu quarto tinha um cheiro de suor e ar abafado que misturado com os berros das crianças o fizeram acordar. Acordou resmungando de cansaço e raivoso pelo barulho. Mal abriu os olhos remelentos e já estava praguejando:
- Qual foi? Um ser humano merece descansar até mais tarde aos domingos... Essas crianças não têm mães, não? Que barulho maldito!
    Passara a semana atravessando a cidade em ônibus lotados e trabalhando duro em suas atividades diárias, e o domingo lhe sobrara para o descanso, afinal, esse dia era sagrado para os que precisavam relaxar. O próprio criador foi quem começou esse ritual dominical. Criou, criou e no domingo descansou.
    Ele levantou com a coberta ainda grudada em suas costas e foi até a janela para abrir uma pequena fresta. Através das vozes dos meninos, uma brisa suave adentrou os seus poros ao mesmo tempo em que a luz do sol lhe queimava os olhos. “A realidade dói”, pensou ele. Em meio àquele espaço solitário, foi até o banheiro e lavou o rosto. Lá fora as crianças gritavam e riam sob a luz dum sol convidativo.
    Logo voltou para a janela, dessa vez abrindo um pouco mais, e viu as crianças agitadas como comerciantes ao anunciarem mercadorias em uma feira livre. Ele, de toda certeza iria reclamar do barulho daqueles meninos, mas algo chamou a sua atenção e ele quis parar por um instante. Ficou observando a cena como um personagem dos filmes de western.
    Eram meninos de oito a dez anos e estavam descalços, a maioria sem camisa e brincavam de diversas maneiras. Alguns mais de lado com seus álbuns trocavam figurinhas de futebol. Um grupo apostava cartas de desenhos animados e, ao canto, em sua grande maioria, vários jogavam bolinhas de gude e formavam um grande círculo.
- São apenas crianças. Mas que vida boa dessa molecada... Não precisam se preocupar com nada - disse ele, ainda mal humorado.
    Assim, não quis mais reclamar dos meninos, mas a sua raiva aumentava à medida que eles se divertiam e gritavam cada vez mais alto. Para não se aborrecer mais e, já que estava acordado e não conseguia voltar a dormir, resolveu sair do quarto e fechar a janela de uma vez por todas. Foi até a sala, sentou-se no sofá e, defronte a TV, assistia aos apresentadores dinossauros que reinavam há décadas nas grades dos canais. Não se deu ao trabalho de abrir as janelas do apartamento e aquele cheiro de ar abafado aumentava cada vez. Já estava acostumado de tal maneira que não sabia distinguir os ares da sua rotina, apenas ligou o ventilador e com o controle começou a pular os canais. 
    Não demorou muito e o volume da televisão era invadido pela gritaria dos meninos que tinham as vozes refletidas através dos prédios. Ele não queria se levantar e apenas aumentou o volume do aparelho. Conseguiu ganhar a competição e teve paz por alguns poucos minutos, mas novamente a criançada berrava do lado de fora. Foi o ápice da sua raiva. Levantou-se do sofá como um vilão carrancudo dos desenhos animados e estava decidido a fazer uma reclamação daquele barulho que o infernizava. Foi até o quarto e abriu a janela com tamanha violência que os meninos lá em baixo pararam o que estavam fazendo, olharam para cima e o viram com uma cara carrancuda de poucos amigos.
    Ele os encarou com a pior cara do mundo, e os meninos o encararam por alguns segundos através daquele ar de inocência. Ele olhou para aqueles olhos miúdos que vibravam energéticos e por um instante ficou paralisado. Talvez por vergonha de estar ali procurando briga com uns pequenos ou pelo fato de atrapalhar as suas brincadeiras inocentes. Não demorou e os meninos logo pararam de olhar para ele. Agiram como se ele não estivesse ali os observando e voltaram a se preocupar com as brincadeiras.
    Lá de cima ele observava ainda mal-humorado, mas algo imprevisto aconteceu fazendo com que ele desmontasse a sua face carrancuda e logo esboçasse um pequeno riso no canto da boca. As crianças discutiam as regras das bolinhas de gude. A discussão foi ficando engraçada à medida que os meninos se posicionaram agitados sobre o assunto. Logo depois que conseguiram manter certa ordem, um menino acabou indo embora alegando que os outros tinham roubado as suas bolinhas. Os outros se defendiam respondendo que aquelas eram as regras do jogo e que nunca mais iriam chamá-lo para brincar. Ele observava a cena toda e, por um instante, foi ficando interessado naquilo que estava vendo e não quis mais voltar para a sala com a TV e o sofá, ficou no quarto e abriu a janela inteira.
    Da janela, ele foi ficando ainda mais sorridente ao ver que um dos meninos que trocavam figurinhas tinha acabado de conseguir a última que faltava para completar o álbum. Era tanta felicidade daquele menino que ele saiu pelo corredor gritando para todos os lados:
- Eu consegui o Gerrard. O álbum tá completo!
    E em sua maioria os meninos riam, e outros ficaram com ciúmes, pois não conseguiram completar o álbum de figurinhas primeiro. No mais, o barulho daquelas vozes infantis preenchia a manhã de domingo, e a cena alimentava o olhar do observador.
    Naquela altura, seu corpo estava leve e ele surgia com um sorriso nostálgico no rosto. Lembrava dos tempos de menino e de como conseguia as melhores figurinhas e as maiores quantidades de bolinhas de gude.
    Assim, não quis mais atrapalhar a brincadeira dos meninos e resolveu sair da janela para começar a cuidar da vida. Ligou o aparelho e pôs um som dos anos sessenta em volume médio. Tomou banho e fez o seu café ainda pensando naquela alegria. Havia uma inquietação e uma vontade de se mover que ultrapassava as paredes geladas e chegava até o seu corpo. Uma sensação nova e ao mesmo tempo familiar. Ele havia acordado para o domingo.





Talbert Igor